segunda-feira, 16 de junho de 2008

A bala - Parte I

Deixo-vos algo que li a algum tempo. Gostei. Pelo simples facto que é diferente


"Bala nº1"

A primeira bala (serão seis, equitativamente distribuídas) - três para ela, três para mim -, embora não igualmente distribuídas) penetra no corpo de Lily cerca de cinco centímetros abaixo do seu seio esquerdo. Lentamente, ou, se não lentamente, gradualmente, ou, se não gradualmente, pelo menos a pouco e pouco, sem qualquer hiato de prosseguimento em tempo real, sem saltar por completo milímetro algum, a bala inicia a sua travessia inevitável para o tórax da Lily. Um pequeno sinal castanho com a forma de um oito de derrubado, que ela tem a cerca de cinco centímetros abaixo do seio esquerdo, conspícuo na sua pele branca-azulada isenta de qualquer outra mácula, não constará em parta alguma da autópsia - o que significa que deve ter-se evaporado instantaneamente: puf! Antes mesmo de ter cometido este pequeno homicídio inicial, a primeira bala já atravessou três metros de espaço com ar condicionado, abriu caminho pela viscose cinzenta do vaporoso vestido da Ghost da Lily e rasgou a lustrosa seda preta da sua combinação. Agora, porém, a sua pele quase perfeita começa a esticar-se lentamente, a resistir ao movimento progressivo do ápice metálico do projéctil, a encovar-se acima da delicada caixa torácica, a ficar momentaneamente retesa do ombro ao quadril... mas, após esta falsa e desesperada resistência, acaba por romper-se sem dificuldades. No interior do cano da arma criminosa, raias helicoidais imprimiram à bala uma rotação no sentido inverso ao dos ponteiros do relógio. Este movimento rotativo maximiza a estabilidade da trajectória e, consequentemente, aumenta a precisão final. Mas é a energia cinética da pele distendida, e não a rotação, que propulsiona a bala através da primeira camada de carne.
Os ferimentos de entrada são manifestamente sensuais. E embora eu não venha a ver os ferimentos de Lily enquanto ainda frescos, examinarei fotografias de outras penetrações: o círculo de abrasão que envolve um ferimento de entrada, causada pela fricção da bala na pele e que a deixa esfolada, parece batom rosa-vivo sob lipgloss brilhante.
(...)
Depois da pele e de uma fina camada de gordura (perdoa-me Lily), de alguns vasos, nervos e membros torácitos, a bala entra no entrecruzado vermelho dos músculos da caixa torácita (...)
A seguir, fractura a quinta e sexta costelas de Lily. A força surda deste impacte projecta diversas pequenas esquírolas de osso que vão causar mais estragos periféricos.
(...)
Um fragmento de costela particularmente aguçado sobe, numa suave parábola de destruição, rumo ao vértice do coração de Lily. (...)

Por fim, atravessou gordura, derme, epiderme pela morta, cabelos.
Em virtude de, no momento do disparo, Lily estar recostada numa cadeira de costas metálicas, o ferimento de saída da primeira bala não é de modo algum tão simples como poderia ter sido noutras circunstâncias.
(...)
Quando a bala irrompe, de lado, das costas dela, a pele está a esticar-se para fora e a exercer pressão, com força, contra a superfície oclusora da cadeira.
Essa pressão, que também é exercida através do tecido da combinação e do vestido da Lily, faz com que, em vez de uma forma limpa e simples, o ferimento de saída seja uma coisa manchada, carnuda e meticulosamente reticulada que lembra um clitóris."


In Crime em dois actos (Corpsing), Toby Litt

1 comentário:

Francisco disse...

Já tinha lido isto em qualquer laod... muito bom.